domingo, 18 de novembro de 2012

Mário Cláudio e Simão Botelho, "o canalha"



Então pode ser uma lembrança do Tiago Veiga?, assim foi como Artur Sá da Costa se dirigiu a Mário Cláudio, este afirmando, Isso já não será possível, já está no cemitério! E praticamente logo de seguida, Bigotte Chorão, Será que posso cumprimentar Tiago Veiga? E um abraço afectuoso lá saiu. Se para além deste recorte social posso salientar, este acontecimento notável, que ficará para a história, só no segundo dia, no primeiro dia do “Colóquio Amor de Perdição: olhares cruzados”, o que sucedeu foi uma sucessão de intervenções institucionais, já aqui relatadas neste blog, salvando-se, para além desse cariz, a inclusão de Camilo no Plano Nacional de Leitura e em várias actividades institucionais pedagógicas e a sua inclusão na estrutura curricular do secundário, a intervenção de Vasco Graça Moura, em cuja comunicação realizou pistas para uma interpretação sobre o “Amor de Perdição” e a “Sereia”, relacionando ambas as ficções de Camilo, naquilo que as aproxima e as distancia. De realçar, igualmente não só a exposição “Amor de Perdição: olhares cruzados”, como igualmente a abertura da “Sala de Leitura”. Uma nova viagem poderá ser começada por novos leitores!


Por seu turno, o segundo dia foi salvo por Bigotte Chorão, Pacheco Pereira, João Lopes e por  Mário Cláudio, ao lado de intervenções numa perspectiva hermenêutica biográfica, estética (isto é, as capas das edições luso-brasileiras e algumas estrangeiras, numa viagem pelo cinema do “Amor de Perdição”) e bibliográfica. Para já, fica aqui o registo da comunicação de Mário Cláudio (a de Pacheco Pereira e a de Bigotte Chorão a seu tempo virão) e algumas fotografias do momento, momentos únicos e inesquecíveis possivelmente irrepetíveis, só na memória, destes encontros sempre saudáveis entre os nossos criadores, da cultura e da língua portuguesa. Em “Tiago Veiga”, uma viagem ficional entre Camilo e Bernardino Machado, entre tantos outros, Mário Cláudio lá colocou a lembrança do dia, Não é com “o”, Não, com “u”, Amadeu com “u”, romance que até podia ter levado, o de “Amadeo”, não o meu! Aqui está, portanto, a conferência de Mário Cláudio, entre a tradição familiar e a receção de “Amor de Perdição” na família, como nasceu o seu interesse pela obra de Camilo, passando pelas suas ideias sobre Simão Botelho, “o canalha”, “o sapo que Camilo transforma em príncipe”.


A deciatória de Mário Cláudio no meu exemplar de "Tiago Veiga"
 
MÁRIO CLÁUDIO
"Simão Botelho: a dimensão ficcional de um herói"

Gostaria de começar por fazer uma espécie de quadro cronológico de afectos, que passam também pela tradição familiar, relativamente à recepão do romance “Amor de Perdição”; e isto é também de alguma forma, o desenho de uma mapa de sentimentos, tipo reacções de leitura, que poderá ter algum interesse para duas disciplinas, infelizmente pouco praticadas em Portugal, e que continuam a estar condenadas pelas academias, e que são a sociologia da literatura e a sociologia da leitura. Sei que não tem havido trabalhos nessas cadeiras, nessas disciplinas literárias, e isso ressentido não apenas na visão histórica da nossa literatura, como inclusivamente na aprendizagem indispensável para quem pretende continuar com a tradição de escrita, neste caso uma tradição ficcional em que Camilo ficaria, muito grato, com certeza e enriquecido com os contributos que fossem dados por esses estudos, que infelizmente ainda estão distantes



Mário Cládio, a escrever a lembrança no "santuário camiliano", nas palavras de Bigotte Chorão, no livro "Tiago Veiga"
Camilo, como sabemos, morre em 1890 e três anos depois a minha avó materna. A minha avó era uma menina muito bonita, casou muito cedo, ela nunca me disse, mas disse-mo a minha mãe muitas vezes, que a minha avó tinha lido o “Amor de Perdição” ainda solteira e que teve uma crise de melancolia, que nós hoje chamaríamos uma depressão, caindo numa espécie de apatia, uma letargia estranha que não se compreendia e que tinha a sua origem na leitura do romance de “Amor de Perdição”.
Devo dizer que o meu contacto com Camilo e com a sua obra foi pelo visionamento do filme de António Lopes Ribeiro e em 1943 não terá sido fácil a uma criança perceber fosse o que fosse daquela história. Só começou a despertar no dia em que descobri uma dessas inúmeras edições, na biblioteca camiliana, na biblioteca do meu pai. Quando li o romance, devia ter talvez doze, treze anos, pareceu.me alguma coisa completamente tola, isto para dizer o que senti na altura. Mas pouco tempo depois, quando fui para o Liceu, e então sim, era obrigatório estudar o “Amor de Perdição” e pareceu-me nessa altura muito mais interessante: não tanto por aquilo que representava a construção novelística ou pela, digamos, edificação ficcional do imaginário, mas por uma espécie de libertismo que por ali entrava e que necessariamente atraía muito mais a um adolescente de 16 anos que era nessa altura. Só muito mais tarde é que me debrucei, quando começava o meu trabalho de escritor, sobre o “Amor de Perdição” e aí foi de facto um “Amor de Perdição”. A partir daí comecei a perceber a grandeza do livro, que para mim estava naquilo que era extremamente inovador na literatura portuguesa e que estava sobretudo na mecânica da construção ficcional, na utilização e no manuseamento dos tempos e ainda a capacidade de dizer muito em muito pouco espaço, sendo um romance verdadeiramente romance no osso, ao contrário daquilo a que estava habituado a ler, e que eram ficções muito mais luxuriantes, muito mais transbordantes do que aquela história tão simples do “Amor de Perdição” e que era dado por Camilo por uma enorme paixão e que era insuperável. O filme de Manuel de Oliveira veio, de alguma forma, corroborar essa minha paixão.



Artur Sá da Costa e Tiago Veiga, digo, Mário Cláudio

O título desta conversa, pretensioso, é: “Simão Botelho: a dimensão ficcional de um herói”; e a pergunta que tenho de fazer necessariamente, logo no início, é esta: que em foi Simão António Botelho? E a resposta está no “Dicionário de Camilo Castelo Branco”, de Alexandre Cabral. [Mário Cláudio lê metade do verbete].  Uma figura exemplar! Este é o Simão Botelho; e onde está a Teresa? Aqui não aparece. Não se sabe se ela existe, se existiu alguma vez, que tipo de mulher é que seria. Mas é nesta figura que Camilo pega para a transformar num herói romântico e creio que estaria em Camilo, na sua memória de grande leitor que era, a figura de “Werther”. A meu ver, Camilo quis criar um “Werther” à portuguesa, mas não o conseguiu. Não é exactamente pelas figuras, que é uma galeria interminável, que Camilo cria é [reconhecido], mas sim pela arquitectura dos seus romances, pela ironia, pelo sarcasmo e por outras características clássicas super-referidas na obra camiliana. Não creio que as figuras de Camilo, de uma forma global, há algumas excepções, sejam figuras que ultrapassem a dimensão do cartão recortado, do boneco de cartão recortado. São muitas, mas a cada estereotipo corresponde , precisamente, a isso, à natureza do estereotipo: os brasileiros são todos broncos, feios e têm joanetes; as heroínas ou são mulheres fatais, ou meninas puríssimas e angelicais, como a Teresa, e os heróis são valdinos, e as outras são personagens que se repetem ostensivamente de romance para romance, sem ter a ver com algo que lhes assiste.



O abraço para a história, Mário Cláudio e Bigotte Chorão

A propósito desta comemoração, a revista “Colóquio-Letras” convidou três escritores portugueses para escreverem um conto sobre a figura de Simão Botelho: [eu próprio], Lídia Jorge e Hélia Correia. No caso de Hélia Correia, vê a figura de Simão Botelho exactamente como eu a vi no romance “Camilo Broca”: no fundo, um traste, um indivíduo que era um traste do ponto de vista ético, deontológico e amoroso, um tipo inqualificável e que Camilo embelezou da forma que conhecemos. Pegou também na figura feminina (não na Teresa, que fica assim arrumada a um canto na sua eterna virgindade, que é dúbia, no romance não sabemos se ela a perdeu ou não – temos a certeza que Julieta a perdeu, Romeu tocou-a pela janela! – mas em relação à Teresa não temos, não sabemos, mas é deduzível que a não tenha perdido), mas na figura da Mariana. A Mariana acaba no conto de Hélia Correia por chegar à Índia com Simão, que continua a sua vida de malfeitoria, aliás documentada, de viver à custa de certas mulheres, sobretudo ricas, nem sempre dotadas de grande beleza, pouco festejadas pelas graças naturais, mas, enfim, aquecidas de património, que para Simão era extremamente sedutor. O que acontece com Mariana, no conto de Hélia Correia, é uma figura serôda, uma terra muito próxima de Goa, e talvez pelos maus princípios e pela turbulência de Simão, transforma-se, nada mais nada menos, numa patroa de um bordel. O texto que escrevi chama-se “O Canalha” e o canalha é Simão Botelho. É uma história de proveito e de exemplo, não só para vermos a fibra que tecem os vários malhadinhas a partir da literatura portuguesa, como também se tece o escritor Camilo Castelo Branco, que consegue transformar um sapo num príncipe.
[Mário Cláudio leu o seu conto].


Uma perspectiva da mesa no auditório do Centro de Estudos Camilianos, com Mário Cláudio, Vereador da Cultura da Câmara Municipal de V. N. de Famalicão (Paulo Cunha) e José Manuel de Oliveira
Se não vale mais do que isto, valerá pelo menos para demonstrar alguma coisa do fenómeno como é que os ficcionistas convivem. É que muitas vezes as figuras reais são muito mais espessas do que as figuras do que nós ficcionámos; e quando pretendemos transformá-las em alguma coisa que não se contenha naquilo que elas eram, produzimos o tal boneco de cartão que à pouco referi. Mas também é verdade que não é por aí que se mede o talento ou o génio de um autor como Camilo Castelo Branco. Em relação às figuras isoladas, se não consegue muitas vezes dar-lhe alguma profundidade, a dimensão da ficção, ele dá, ao fim e ao cabo, uma perspectiva insuperável daquilo que é a condição humana.

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